No cenário atual, onde a busca pela autonomia individual e pela liberdade de escolha tem ganhado destaque, uma questão delicada e preocupante tem emergido no campo da saúde: a prática da automutilação a pedido do paciente, sob supervisão médica. A questão não é apenas controversa, mas levanta sérios questionamentos sobre ética, humanidade e os limites da prática médica.
A automutilação, por definição, é um ato de causar danos ao próprio corpo. Historicamente, sempre foi vista como um sinal de sofrimento psicológico profundo, frequentemente associado a transtornos mentais como depressão, ansiedade e transtornos de personalidade. A ideia de que um paciente, em pleno uso de suas faculdades mentais, possa solicitar a um profissional de saúde que o assista em um ato de automutilação é, para muitos, não só perturbadora como moralmente indefensável.
Primeiro, é crucial abordar o princípio da não maleficência, um dos pilares da ética médica. Este princípio estabelece que os médicos devem evitar causar danos aos seus pacientes. Como justificar, então, a participação em um ato que, por sua natureza, inflige dor e lesões físicas? Ainda que o paciente seja o solicitante, a responsabilidade ética do médico não pode ser simplesmente ignorada. Há uma linha tênue entre respeitar a autonomia do paciente e negligenciar o dever de proteger a integridade física e mental desse indivíduo.
Além disso, a sociedade deve se perguntar: estamos caminhando para um ponto em que a autonomia individual justifica qualquer ação, mesmo que seja autodestrutiva? O conceito de liberdade, tão valorizado em sociedades democráticas, não pode ser deturpado para validar práticas que, em última análise, destroem a própria essência do ser humano.
É necessário também refletir sobre a humanidade que deve nortear a prática médica. A função primordial do médico é curar, aliviar o sofrimento e, quando possível, restaurar a saúde. Atender ao pedido de automutilação subverte esse papel, transformando o curador em cúmplice de um ato destrutivo. Isso é especialmente preocupante em um momento em que a saúde mental é uma questão central nas discussões de políticas públicas. Ao invés de facilitar a automutilação, o foco deveria estar na criação de mecanismos de apoio psicológico e social para prevenir tais desejos e tratar suas causas subjacentes.
Por fim, é imprescindível destacar as implicações sociais desse tipo de prática. Se permitirmos que a automutilação assistida se torne uma norma aceitável, que mensagem estaremos transmitindo? Que a dor e o sofrimento podem ser solucionados com a destruição do próprio corpo? Que, diante do desespero, a única resposta é ceder ao impulso autodestrutivo? Isso seria um fracasso não só da medicina, mas da sociedade como um todo.
Portanto, ao considerarmos a questão da automutilação a pedido do paciente, devemos nos posicionar com clareza e firmeza. A liberdade individual é, sem dúvida, um valor inestimável, mas não pode ser usada como justificativa para práticas que comprometem a saúde e a dignidade humana. É preciso que a sociedade, os profissionais de saúde e os formuladores de políticas públicas rejeitem veementemente essa ideia, reforçando o compromisso com a vida, a saúde e o bem-estar de todos os indivíduos.
A automutilação nunca deve ser uma opção, muito menos uma prática legitimada.
A Automutilação Supervisionada – O Caso Andressa Urach e a Banalização da Medicina
O recente caso de Andressa Urach, que se submeteu a um procedimento de bifurcação da língua – popularmente conhecida como “língua de cobra” – sob supervisão médica, levanta uma série de questões que não podem ser ignoradas. A transformação de práticas de automutilação em procedimentos médicos regulados é não só um desvio perturbador da ética, mas também uma sinalização alarmante de uma sociedade que perdeu o rumo no que tange à saúde e ao bem-estar humano.
Quando falamos de automutilação, estamos nos referindo a atos que, tradicionalmente, sempre foram associados a quadros de sofrimento psicológico e emocional. A decisão de permitir que tais atos sejam realizados sob a égide da prática médica é, francamente, um escândalo ético. Que papel os médicos estão assumindo na sociedade quando aceitam transformar a mutilação em serviço estético? Não podemos ignorar a gravidade dessa questão, pois não se trata apenas de uma escolha pessoal, mas de uma prática que envolve a cumplicidade de profissionais que deveriam ser guardiões da saúde, e não facilitadores de desejos autodestrutivos.
Andressa Urach, ao longo de sua trajetória pública, tornou-se um exemplo do que há de pior no culto à aparência e à modificação corporal. Não é a primeira vez que ela se submete a procedimentos extremos, muitos dos quais já resultaram em complicações graves. Mas, o que mais preocupa no caso da bifurcação da língua é a legitimação desse tipo de mutilação como algo aceitável e até desejável, quando na verdade deveria ser lamentável.
A bifurcação da língua, um procedimento irreversível que provoca alterações significativas na fala, alimentação e, possivelmente, na saúde geral, não deveria, em hipótese alguma, ser tratado como uma simples escolha estética. É uma mutilação, pura e simples. Que um médico tenha sido cúmplice desse ato é algo que deve ser criticado com veemência. Onde está o compromisso com o princípio da não maleficência? Como justificar que um profissional da saúde, que fez um juramento de proteger e preservar a vida, participe de um procedimento que nada mais é do que uma agressão ao corpo? E agora também com a possibilidade de colocar um seio a mais em seu corpo?
A cultura da modificação corporal, quando incentivada por figuras públicas, ganha uma legitimidade perigosa. Estamos diante de uma sociedade que, ao normalizar a automutilação, está sinalizando uma grave distorção dos valores fundamentais da medicina e da saúde pública. Isso não é liberdade de escolha; é um sintoma de uma cultura doente, que valoriza a aparência e a excentricidade acima da integridade física e mental.
Há um limite claro entre o que é considerado uma escolha estética e o que é, na verdade, um ato de automutilação. A bifurcação da língua ultrapassa esse limite de forma alarmante. E não devemos apenas nos lamentar pelo estado em que se encontra Andressa Urach, mas também pela conivência de uma sociedade que permite e até encoraja tais práticas. A medicina, que deveria ser o último bastião contra o autodestrutivo, está, neste caso, contribuindo para a banalização da saúde.
A participação de médicos em procedimentos como esse deve ser condenada, e os limites éticos devem ser rigorosamente defendidos. Automutilação não é, e nunca deveria ser, uma prática legitimada por profissionais da saúde. E casos como o de Andressa Urach deveriam servir como um alerta do caminho perigoso que estamos trilhando. Este é um momento de reflexão urgente, para que a medicina retome seu verdadeiro papel: o de proteger, curar e promover a vida, e não de ser cúmplice na sua degradação.
Artigo de Thiago de Moraes jurista, cientista político, apresentador ancora, jornalista
MTB 0091632/SP